Apesar do entusiasmo à esquerda e do susto à direita, a doutrina de Francisco decorre apenas do melhor das tradições cristãs.
O termo não podia ser mais forte: “horrífico”. Não
apenas horrível, horrífico. E foi o termo escolhido pelo Papa Francisco,
este fim-de-semana, para se referir ao problema do aborto.
As agências de informação
internacionais trataram logo de interpretar a frase. Era, escreveram,
uma forma de acalmar os sectores mais conservadores da Igreja. Nem lhes
ocorreu que fosse mesmo a opinião do Papa. Não quadrava na sua imagem
estereotipada de um bispo de Roma modernaço, quiçá revolucionário. No
entanto, a doutrina de Bergoglio não podia ser mais clara e até vem na
sua tão celebrada exortação apostólica Evangelii Gaudium: “Não
se deve esperar que a Igreja altere a sua posição sobre esta questão”,
escreveu o Papa. Que acrescentou: “Quero ser completamente honesto, este
não é um assunto sujeito a supostas reformas ou ‘modernizações’. Não é
opção progressista pretender resolver os problemas eliminando uma vida
humana” (parágrafo 214).
Também este fim-de-semana houve muita
excitação na imprensa e nas redes sociais com a notícia de que o Papa
baptizara os filhos de uma mãe solteira e de um casal não unido pelo
matrimónio. Só uma mal disfarçada ignorância pode justificar essa
excitação, pois não haverá gesto mais católico do que o de baptizar duas
crianças nessas circunstâncias. Vem nas escrituras.
Estes são
apenas dois exemplos recentes de um estranho caso de paixão: a de uma
parte da esquerda para com o Papa Francisco, de repente transformado no
messias que políticos mais terrenos não conseguem ser. Mário Soares, por
exemplo, assume que só tem “dois ídolos no plano político” – Obama e o
Papa Francisco –, e o colunista do Guardian Jonathan Freedland chega a propor que posters do sumo pontífice substituam os de Obama nos quartos dos adolescentes, uma vez que seria “o óbvio novo herói da esquerda”.
Muitos
jornalistas e comentadores afinam pelo mesmo diapasão, mostrando uma
irresistível tendência para ver apenas os gestos de Francisco que vão ao
encontro das suas causas e ignorando todos os demais. Chegou-se ao
ponto de a mais antiga revista gay dos Estados Unidos, a Advocate,
ter eleito como figura do ano este homem de branco para quem o
casamento entre pessoas do mesmo sexo é “um retrocesso antropológico”.
Não
tenho qualquer dúvida de que o Papa Francisco é uma figura
extraordinária e não pude deixar de notar o imenso significado do nome
que escolheu. Não sendo eu um crente, devo dizer que um dos locais do
mundo onde mais senti a presença de um transcendente foi em Assis, que,
por incrível coincidência, visitei pela primeira vez na manhã de 11 de
Setembro de 2011. Foi por isso com enorme expectativa que segui os
primeiros meses de pontificado e não me surpreendeu a sua resoluta opção
por uma Igreja mais próxima dos pobres. Essa ideia de proximidade com
os mais fracos está, de resto, no coração do cristianismo e quem pôde,
como eu pude, conhecer alguns dos locais mais desgraçados do país e do
mundo, é testemunha de como, tantas vezes, são apenas as instituições da
Igreja as que resistem quando tudo o resto se desmorona.
O
exemplo pessoal de Francisco, ao abdicar de bens e confortos materiais,
ao manter uma infinita capacidade para se aproximar dos doentes e dos
fracos, da Praça de São Pedro à ilha de Lampedusa, permitiu que se
tornasse, de um dia para o outro, numa figura imensamente popular. A
forma aberta como gosta de abordar os dilemas da Igreja fez, ao mesmo
tempo, com que seja visto como um reformador radical. Houve até quem se
entusiasmasse ao ponto de anunciar que “tinha abolido o pecado”:
aconteceu com Eugenio Scalfari, o influente fundador do La Repubblica, cuja crónica obrigou a Santa Sé a um impensável, mas necessário, desmentido formal.
A exortação apostólica Evangelii Gaudium,
o seu primeiro documento programático, criou a ideia de que estaríamos
perante uma nova Igreja. Não faltou quem, à esquerda, saudasse algumas
passagens como representando uma condenação global do capitalismo e da
austeridade, apesar de, no documento, essas palavras nunca aparecerem.
Tal como não faltaram, à direita, acusações de marxismo, apesar de o
documento não só não propor nenhum modelo económico, como nele se
condenar o totalitarismo e o relativismo. Na verdade, a Evangelii Gaudium pode conter propostas revolucionárias, mas não as feitas por estas leituras apressadas e interesseiras.
O Papa
condenou, de forma muito frontal e dura, a idolatria do dinheiro, a
obsessão pelo consumo e a submissão às tentações da ganância. Nem
poderia fazer outra coisa. Afinal de contas, não prega ele a mensagem de
quem condenou a idolatria dos bezerros de ouro? Não dirige ele uma
instituição que, desde 1891 e da encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, até à recentíssima Caritas in Veritate, de Bento XVI, sempre defendeu o primado da pessoa humana sobre a economia?
É
certo que o Papa regista os limites da economia de mercado em termos
que um economista liberal não faria, mas o seu documento não deixa de se
inscrever numa evolução da doutrina da Igreja que partiu de uma
condenação muito forte do liberalismo (e do socialismo) e que, encíclica
após encíclica, foi combinando as suas recomendações sociais e morais
com as vantagens de uma economia aberta e competitiva. Esse processo foi
muito bem descrito por Michael Novak no seu A Ética Católica e o Espírito do Capitalismo
e esta exortação apostólica não representa qualquer inversão de
percurso. Não é, de resto, a existência de uma economia de mercado que
ele critica – são antes “os interesses do mercado divinizado”.
O
que percorre todo o documento é a preocupação com a condição humana e
com a necessidade de uma ética que presida às decisões políticas e
económicas não só ao nível micro, o das nossas relações pessoais, mas
também ao nível macro, o dos governos. A doutrina da Igreja, e Francisco
não se afasta dela, não implica um modelo económico preciso ou uma
ideologia determinada, pelo contrário, distancia-se dos que acreditam
que este ou aquele sistema económico são uma panaceia eterna. “Se alguém
se sentir ofendido com as minhas palavras, saiba que as exprimo com
estima e com a melhor das intenções, longe de qualquer interesse pessoal
ou ideologia política”, escreve-se na Evangelii Gaudium. “A
mim, interessa-me apenas procurar que quantos vivem escravizados por uma
mentalidade individualista, indiferente e egoísta, possam libertar-se
dessas cadeias indignas e alcancem um estilo de vida e de pensamento
mais humano, mais nobre, mais fecundo, que dignifique a sua passagem por
esta terra”.
O sucesso das economias modernas não é apenas o
sucesso da evolução técnica ou das regras invisíveis do mercado. É
também, ou sobretudo, o sucesso do quadro ético e moral que cria os
estímulos certos para preferirmos o tipo de instituições políticas e
sociais que suportam as nossas sociedades progressivas (mesmo em tempos
de crise). O sucesso daquilo a que chamamos capitalismo não deriva do
triunfo do individualismo ou de um egoísmo centrado na satisfação de
prazeres e consumos imediatos, antes em princípios morais que favorecem a
cooperação e a integração. A tensão entre estes valores sempre existiu e
a Igreja nunca lhes foi indiferente. Por isso o seu problema não é com
os empresários, cuja vocação Francisco considera ser “uma nobre tarefa”
desde que se deixem “interpelar por um sentido mais amplo da vida”, para
assim servirem “verdadeiramente o bem comum”.
O Papa não propõe
qualquer revolução política – mas interpela-nos a uma revolução de
comportamentos. Não condena os ricos, mas desafia-os à compaixão e
desafia-os a agir. Como notou Robert A. Gahl, professor na Universidade
Pontifícia de Roma, “para combater a desigualdade e a marginalização,
Francisco não propõe uma redistribuição socialista, antes o primado da
compaixão e da responsabilidade individual”.
Mais do que ser de
esquerda ou de direita, a sua mensagem é a do cristianismo e do primado,
na política e na economia, da dignidade humana, algo que já vem de
Santo Agostinho ou de São Tomás de Aquino. Sem surpresa, julgo eu,
podemos dizer que o Papa Francisco é, antes de tudo o mais, católico.
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